...um homem pragmático...

Protocolar… publicitar… plantar… postular… pulverizar…providenciar…
Esta noite, pela primeira vez deitado entre muros de carris, como um cristo empalhado numa pequena cruz. Nunca teve um fascínio especial pelo vitalismo das estrelas, sempre temeu as suas perigosas fantasias e perigosas maquinações daqueles luminosos magnetos cósmicos. Deslumbrado apenas pelo inócuo ensaio visceral do ritmo das palavras, nunca teve o fascínio em ir além dos carris visíveis, onde a vontade sempre encerrou o seu mundo. Quando era criança estabeleceu o limite, os estores internos, partia com o comboio na métrica medida das suas palavras, sem que as temíveis terras ocultas o tentassem. Pedro nasceu com um pé virado para cada lado, aliás, os pés estavam na posição correcta, o seu cérebro é que nunca o percebeu, comandava-os sempre em direcções proporcionalmente opostas, a natureza da afasia antecipou-lhe a raia do ramerrão destemperado da vida quotidiana. Foi um ponto a seu favor quando foi promovido a chefe da estação, o primeiro imperativo seria ter o receio de embarcar, um exílio no cais que nem sequer era forçado, mas, pré-determinado. Concentrava-se na métrica medida das suas palavras e por instantes conseguia acompanhar o comboio, mesmo que, sempre aquém dos carris ainda visíveis, vencia a exigência da natureza, prestava homenagem à lavra das palavras, apenas interrompida pelo desaparecer da composição.
Safanão… saguão… salão… sensibilização… sensação… simulação…
Hoje, pela primeira vez, a garrafa tinha um vinho muito mais caro, teve necessidade de muitos anos para ter coragem de comprar esta garrafa e se deitar com ela nos mais temidos que amados carris, teve necessidade de muitos anos até que os fins justificassem os meios. Ainda não era demasiado tarde, o mais conhecido de Richard Strauss fazia-se ouvir por toda a estação, como se de uma chantagem se tratasse: “ És uma força nova e um direito novo? Um primeiro movimento? Uma roda por si própria? Podes obrigar mesmo as estrelas a girarem à tua volta? (…) dizes-te livre? É o pensamento dominante que eu quero ouvir e não ficar a saber que te livraste de um jugo.” Nietzsche, F. Assim falava Zaratustra, Círculo de Leitores 1996. Pág.72
Pedro hoje precisava salvar a própria pele, não e nunca de uma terapia, precisava salvar a pele, não e nunca falsificar os resultados, precisava salvar a pele, teimava em ser abatido, teimava em virar as costas a si próprio.
- mata-me Ruben! salva-me a pele!

Nunca tivera um contacto próximo com aquela gente sempre a correr, gente de hábitos estranhos, hábitos sem regra, nunca esteve lado a lado com os passageiros do comboio, mais os que passavam que os que entravam ou saíam, a estação de Castelo de Vide, estação de passagem, era um rodapé vazio na vida daquelas gentes. Nunca se perdeu a imaginar onde aqueles comboios os levariam, nunca perdeu tempo a imaginar-se dentro daquelas cabeças percorrendo os seus sonhos, afinal nasceu com um pé virado para cada lado, aliás, os pés estavam na posição correcta, o seu cérebro é que nunca o percebeu, comandava-os sempre em direcções proporcionalmente opostas, a natureza da afasia antecipou-lhe a raia do ramerrão destemperado da vida quotidiana. Nesta estação comungam-se apenas funções ferroviárias.
Mas… hoje… uma mulher, Mariana, entrou na sua vida, chovia erraticamente, usava um lenço preto na cabeça, atado à frente, crípticos lábios propositadamente muito vermelhos, iridescentes olhos numa figura de actriz monocromática transportando uma garrafa de um vinho muito mais caro, perguntou-lhe as horas ao mesmo tempo que soavam cinco badaladas no relógio da gare, Mariana, para quem esta estação não foi o tangível terminal, o comboio pararia às sete.
- Abracei-a de forma mecânica, apeteceu-me entrar dentro daquela cabeça.
Ouviu Mariana como se mondam palavras num dicionário sem curiosidade em desvendar o seu significado. Pedro adivinhava que a conversa com Mariana não ia ser fácil, aquele escritório de chefe-de-estação sempre fora um solo pouco fecundo, o único escritório que ocupara durante trinta anos permaneceu sempre igual, como se de uma nua e fria repartição se tratasse. Chovia erraticamente, humedecendo toda aquela litania, no pano de fundo não sei se eram as suas palavras ou a sua vontade de activar uma implacável, mas empática, conspiração. Imaginava Mariana como uma potencial adversária num paralelo destino, não a iria enfrentar directamente.
- Abracei-a de forma mecânica, apeteceu-me entrar dentro daquela cabeça. Perceber a que a trouxe até aqui, perceber o que a levaria a embarcar no último comboio de passageiros, tão conhecido como o ávido iron horse, apitaria ao longe, puxando trinta carruagens, pararia na plataforma, recolheria apenas Mariana numa de 2ª classe, ao mesmo tempo que as sete horas soavam no relógio da gare, ela beberia a garrafa de um vinho mais caro.

Estilhaçar… esbracejar… escadear… escaldar… escapar…
Ainda ontem pela madrugada, Mariana voltava atrás para verificar se as luzes do seu carro estavam acesas, o sinal de aviso nunca tinha funcionado muito bem, aliás em nenhum dos seus carros e em nada da sua vida, mas pela primeira vez na vida estacionou o carro num lugar seguro e bem iluminado da capital, a viagem iria ser longa até Castelo de Vide.
No táxi, no caminho da estação de Santa Apolónia, o condutor reclamava-se um injustiçado cumpridor da lei, andava nesta vida há tanto tempo e nunca tinha visto nada assim!!! Gastou 200 contos a pintar o carro, o transtorno do tempo que esteve sem trabalhar, e agora uma nova lei já não o obrigava a tal. O governo faz leis para quem não existe, quem é que ganha para andar sempre a mudar o carro de cor? E só depois as corrige com nova lei! O pior de tudo é que a cor anterior era mais bonita e os clientes, cada vez mais exigentes, preferem a concorrência, quem é que se sente confortável num táxi desta cor?
A viagem confirmou-se mesmo longa até desembarcar, Ruben e ela não se viam há muito tempo, esta era a alegria dos muitos reencontros.
- Marianinha! Há quanto tempo!
Detestava que a tratassem por diminutivos, nunca se sentiu como tal, mas ainda não foi desta que o conseguiu repreender, e, este não era o que mais lhe desagradava, pois também estava lá o seu nome.
Vinte anos, a ela não lhe estava a apetecer falar no que acontecera nesse intervalo de tempo
- Estás mais velha!
- Estás mais gordo! – Ruben (antes Lucas) já não tinha os seus 23 sadios anos, os revoltos cabelos loiros, excessivamente macios.
-Deixei de fumar, lembras-te? Estava a ficar mais feio!
- Continuas o rapaz mais bonito que jamais conheci! - Afinal isso era importante para ele, admitia-o quando tentava minimizar essa característica, e, apesar de ser verdade, ela fez sempre questão de lho dizer.
Ambos lembraram a primeira e única vez que fizeram amor, não é que de uma história de amor se tratasse! Não tinha sido o sucesso que ele esperava, pelo hábito enraizado em todos os homens da sua geração! Nenhum dos dois percebeu muito bem aquela pequena noite, vinte anos atrás, ela nunca quis encontrar uma explicação, acreditava que as coisas como estas se vivem apenas, quando se explicam perdem a sua energia e influência para o futuro. Mariana sempre soube lidar com o que aconteceu, apesar da distância e de nada ter percebido, apesar de lhe ter pago vinte mil escudos, chamou-o amor.
Ele dizia estar a ser pela primeira vez infiel à namorada, ela ria como que de uma grande piada!
- Foste embora e não disseste nada!
- Era cedo para ti, meu querido, não te quis acordar! - Já não o chamava de amor! O tempo afinal passou pelas palavras!
- Li o teu livro daquele taxista que mudou a pintura do carro, fartei-me de rir, principalmente quando decidiu ir fazer ginástica para reduzir a barriga para os clientes se sentirem melhor no seu taxi! Casaste?
- Sim, ele ainda hoje deve estar no mesmo café de Telheiras em que o deixei, medindo o tempo pelo acabar do seu cigarro, o resto do maço em cima da mesa, a carteira e o telemóvel. Ah! E penso que um copo de licor, sempre o mesmo copo, não gostava de beber, não sei se o copo lá estava, mas de qualquer modo compunha melhor o cenário.
Ela sempre lhe lá vira um copo, mas agora apostava que não, ele tinha deixado de beber para lhe fazer a vontade, dizia ele! Estava a ficar com barriga e que o álcool diminuía o seu desempenho como companheiro. Nem o ousava fazer às escondidas, pois isso só mostrava o medo por ela e admiti-lo era pior para ele do que fazer de conta que tinha sido opção sua.
- Ainda hoje deve estar no mesmo café em que o deixei olhando quem passa e parando o olhar numa rapariga mais atraente percorrendo a sua direcção enquanto estava ao alcance da sua vista, não com qualquer intenção mas pelo hábito enraizado em todos os homens da sua geração, nunca ousou trocar um olhar mais demorado com qualquer uma delas! Foi lá que o conheci, naquela altura ainda acreditava que o conseguia tirar de lá! Passado pouco tempo achei que não tinha esse direito e comecei a passar por lá de vez em quando, cada vez menos.
- Porque vieste?
- Ele zangou-se comigo, nunca o tinha ousado fazer! Tinha esquecido as luzes do carro acesas e a bateria avariou. - És sempre a mesma! Sempre no mundo da lua! Quando é que começas a ter atenção onde pões os pés? - Eu não via esse tipo de importância no acontecimento. Acho que percebi que estava farto de mim, pois eu era assim mesmo, sempre assim! As luzes ficavam muitas vezes acesas e ele achou sempre piada, mas a bateria nunca tinha avariado! Eu acho que ele ficou logo zangado na décima terceira vez, mas nunca se apercebeu, eu antecipava-lhe sempre um pedido de desculpas e com um sorriso quase de chantagem: – Deixei a luz do carro acesa! - Dizia. Quando queria dizer: - Não te vais zangar pois não? No fundo já se percebia que era ele que a queria mudar, perdeu a paciência!
Mariana hoje precisava salvar a própria pele, não e nunca de uma terapia, precisava salvar a pele, não e nunca falsificar os resultados, precisava salvar a pele, teimava em ser abatida, teimava em virar as costas a si própria.
- mata-me ruben! salva-me a pele!...
Inquietar… inquinar… insinuar… incitar… insular… inspirar…
Pedro conhecera Lucas (agora Ruben) no dia do seu próprio casamento, casava nesse dia com uma prostituta, casava com Daniela pelo amor incondicional que lhe tinha.
O jardim estava carregado de estimulantes sugestões sensoriais, impacientes efeitos de clareira luz e de sombria vegetação. Ocorreu-lhe que, neste jardim, nenhum destes antúrios e begónias atingiriam a maturidade imunes aos caprichos desta luz, sobreviveriam após as suas raízes serem escoriadas.
- Tirei o capuz de carrasco e abracei-o, foi a primeira vez que soluçou, Lucas tinha 13 sadios anos, revoltos cabelos loiros, excessivamente macios, o soluço era imóvel e submisso, não cedeu nem resistiu subjugado no contacto e controlo de minhas mãos, também frágeis.
Não cedeu nem resistiu ao febril e amuralhado olhar de Pedro. Soluçava consumido na dor, nada podia fazer contra o desejo enfermo de domínio daquelas mãos , aquela noite fora igual para os dois, ambos observavam a complexidade dos vultos de ambos desaparecendo, despertando agora do infame medo. Resignados a não desabarem em algo de novo, a experiência era igual para os dois, não estavam preparados para a absolvição daquela estúrdia.
No regresso, Pedro ansiava por abrir um espaço, não uma distância, entre si e aqueles viciantes soluços.
Amava-a, Daniela oferecia favores sexuais, em troco de dinheiro, seria ela ou uma outra a cumprir a profecia de Ovídio: "Enquanto os escravos forem falsos, os pais severos, as coscuvilheiras pérfidas e as meretrizes fáceis, Menandro viverá".
Dissimulava as marcas e a fama do pecado à luz do dia, porém, imunes aos caprichos dessa luz, o seu sorriso era sempre inseguro à luz do dia, recusava imaginar que esse sorriso se transformasse durante a noite, num riso estrategicamente sedutor, num rosto estrategicamente vazio.


Nunca tivera um contacto próximo com aquela gente sempre a correr, gente de hábitos estranhos, hábitos sem regra, nunca esteve lado a lado com os passageiros do comboio, mais os que passavam que os que entravam ou saíam, a estação de Castelo de Vide, estação de passagem, era um rodapé vazio na vida daquelas gentes. Nunca se perdeu a imaginar onde aqueles comboios os levariam, nunca perdeu tempo a imaginar-se dentro daquelas cabeças percorrendo os seus sonhos, afinal nasceu com um pé virado para cada lado, aliás, os pés estavam na posição correcta, o seu cérebro é que nunca o percebeu, comandava-os sempre em direcções proporcionalmente opostas, a natureza da afasia antecipou-lhe a raia do ramerrão destemperado da vida quotidiana. Nesta estação comungam-se apenas funções ferroviárias.
Mas… um homem, James, tinha entrado um dia na sua vida, chovia erraticamente, ocupou um vagão isolado e abandonado no outro lado da linha, usava sempre luvas brancas e mantinha sempre a mesa posta na esplanada do vagão, de acordo com a rigidez do detalhe do requinte, uma toalha branca com os adequados 25 centímetros a cair para cada lado, guardanapos com exuberantes dobras, uma também exuberante baixela de cor branca, marcadores de pratos e de copos em prata, à direita e de dentro para fora, meticulosamente estruturados a faca para carne, faca para peixe, faca para aperitivos; à esquerda, de dentro para fora, meticulosamente estruturados, garfo para carne, garfo para peixe, garfo para aperitivos; talheres de sobremesa em frente ao prato. Copos meticulosamente alinhados, copo de água, copo de vinho tinto, copo de vinho branco e copo de champanhe. Um arranjo floral no centro, antúrios e begónias.
James, para quem a estação era o tangível terminal, usava um relógio de bolso, atrelado a uma fina corrente, famosos por terem sido usados pelos trabalhadores do caminho-de-ferro, a que dava corda todos os dias, meticulosamente, à mesma hora, pouco antes de no relógio da gare soarem cinco badaladas.
- Abracei-o de forma mecânica, apeteceu-me entrar dentro daquela cabeça.
Pedro adivinhava que a conversa com James não ia ser fácil, aquele escritório de chefe-de-estação sempre fora um solo pouco fecundo, o único escritório que ocupara durante trinta anos permaneceu sempre igual, como se de uma nua e fria repartição se tratasse. Chovia erraticamente, humedecendo toda aquela litania, no pano de fundo não sei se eram as suas palavras ou a sua vontade de activar uma implacável, mas empática, conspiração. Imaginava James como um potencial adversário num paralelo destino, não o iria enfrentar directamente.
- Abracei-o de forma mecânica, apeteceu-me entrar dentro daquela cabeça.
James voltava atrás para verificar se as luzes do seu carro estavam acesas, o sinal de aviso nunca tinha funcionado muito bem, aliás em nenhum dos seus carros e em nada da sua vida, mas pela primeira vez na vida estacionou o carro num lugar seguro e bem iluminado de Douglasville. Viajou até ao aeroporto num táxi preto e verde, jamais se sentiria bem num de outra cor. A viagem iria ser longa até Castelo de Vide.
A sua mãe tinha morrido. Quando James nasceu deixou de reconhecer os rostos das pessoas, chamavam-lhe prosognosia, aqueles que acreditam que tudo no universo é acessível ao entendimento, aqueles que acreditam que um trovão vem sempre na sequência necessária do relâmpago, ainda assim, Sarah apenas os reconhecia em retratos invertidos.
- O meu irmão Lewis, tinha 13 sadios anos, revoltos cabelos loiros, excessivamente macios, morreu afogado antes de eu ter nascido.
Sarah voltou a engravidar e James era exactamente igual ao irmão falecido, as dores do parto tinham sido exactamente as mesmas, protegera-se contra a confusão, Lewis não existia num retrato invertido de James, tinha de os distinguir. Na casa da família havia muitos retratos onde moravam gerações de famílias e soldados, todos heróis e todos de luvas brancas, todos alcançaram o limite da notoriedade, estes retratos eram toda uma protecção segura para as gerações vindouras, assim como um retrato de Lewis.
James tinha como profissão aquilo que aqueles que acreditam que tudo no universo é acessível ao entendimento, aqueles que acreditam que um trovão vem sempre na sequência necessária do relâmpago, classificavam-no como diseur, palavra-chave para aceder a uma forma de vida de muito alto risco, a vida nómada, a uma forma de vida de muito alto risco, a imprevisibilidade dos encontros. Andava por todo o mundo onde ganhava a vida, dizia as histórias dos outros, as histórias daqueles retratos lá da casa. Apesar das histórias serem antigas, por onde passavam ficavam gravadas como frescos. Há 33 anos atrás a viagem tinha sido longa até Castelo de Vide.
No final das histórias havia sempre a hora da dança, a hora da roda, a hora das palavras sussurradas ao ouvido, a hora em que o corpo mais se agita.
- Tirei o capuz de carrasco e abracei-a, foi a primeira vez que soluçou, Beatriz tinha 13 sadios anos, revoltos cabelos loiros, excessivamente macios, o soluço era imóvel e submisso, não cedeu nem resistiu subjugado no contacto e controlo de minhas mãos, também frágeis.
Beatriz, não cedeu nem resistiu ao febril e amuralhado olhar de James. Soluçava consumida na dor, nada podia fazer contra o desejo enfermo de domínio daquelas mãos , aquela noite fora igual para os dois, ambos observavam a complexidade dos vultos de ambos desaparecendo, despertando agora do infame medo. Resignados a não desabarem em algo de novo, a experiência era igual para os dois, não estavam preparados para a absolvição daquela estúrdia.
No regresso a Douglasville, James ansiava por abrir um espaço, não uma distância, entre si e aqueles viciantes soluços.
Recebera uma carta manuscrita.

Meu querido James:

Quando receberes esta carta estarei muito longe, do outro lado de todos os mares, deverás regressar a Castelo de Vide, ficarás à espera do teu filho, chegará na hora exacta.
Beatriz

PS: Mantém sempre uma mesa posta.

Chovia erraticamente. Naquele escritório de chefe de estação que sempre fora um solo pouco fecundo, o único escritório que ocupara durante trinta anos permaneceu sempre igual, como se de uma nua e fria repartição se tratasse, o chefe da estação, recebera uma curta e telegráfica correspondência: “Todas as coisas são metáforas”, conhecia o autor – Goethe - conhecia a letra - Ruben – registou-a como se mondam palavras num dicionário, sem curiosidade em desvendar o seu significado. Pedro contou vinte cinco contos, saiu a correr e procurou Ruben.

Mais tarde:
- James recolheu a curta e telegráfica correspondência, que a ele era dirigida, ao mesmo tempo que soavam cinco badaladas no relógio da estação, não leu, entregou-ma com o seu relógio de bolso, virou-me as costas, entrou na limusina estacionada à porta da estação.
Traição…trambolhão… transacção… tranquilização…transfusão… tradução…
Pedro adivinhava que a conversa com a mulher não ia ser fácil, o seu casamento sempre fora um solo pouco fecundo, a única casa que ocuparam durante trinta anos permaneceu sempre igual.
- Reclamo para mim a inocuidade da minha traição, não consta dos acontecimentos trágicos, mas do revelado fetichismo da vida quotidiana.
- Traição e inocuidade? Inimigos irreconciliáveis nos dogmas petrificados da vida quotidiana. Pagaste o serviço?
- Tal atitude não se me revelou explicitamente importante.
- Mas é claro que evidencia toda a importância, porque o procuraste?
- Pelo amor incondicional que te tenho Mulher! Pelo amor que me dizes ter. Não posso dispensar esse amor. E tu? Porque só agora me desprezas?
- Pelo amor incondicional que te tinha, pelo erro grosseiro da tua traição, estou prisioneira dos petrificados dogmas da vida quotidiana.
- Reclamo a inocuidade da minha traição, alheia a citações da tomada de consciência, tinha de te trair, estive enclausurado no meu amor, convulsiva teia de excremento!
A traição era o acto e não a flecha. Cativo naquele trágico escolho de insatisfação de ocupante do cais, enganando o tempo em cafés e cigarros... transbordando na vontade de fazer a romaria das artérias. Anoitecias "mulher da noite doente em que os homens se perdem", eu transbordando de vontade de desfolhar a algazarra.
- Traíste-me!
- Como ousas? Não alterei nenhuma das tuas regras, não abusei da tua vergonha, afinal foi pelo amor incondicional que te tenho. Não posso dispensar esse amor. E tu? Porque só agora me desprezas? Ruben libertou-te da fúria dos teus ciúmes, porque só agora não te deitas comigo?
- Inverteste as leis naturais, não vejo utilidade nessa tua falsa consciência! Não vejo utilidade em secar o calafrio do pêndulo.
- Reclamo para mim a inocuidade da minha traição, hoje pedi a Ruben para me matar, virou-me as costas, entrou na limusina estacionada à porta da estação.

Protocolar… publicitar… plantar… postular… pulverizar… providenciar…
Esta noite, pela primeira vez, deitado entre muros de carris, como um cristo empalhado numa pequena cruz.
Adivinhava que o comboio não ia nunca mais passar… passou pela última vez… um cronista anunciara o encerramento do ramal de Cáceres, o último comboio de passageiros, tão conhecido como o ávido iron horse, apitou ao longe, puxando trinta carruagens, parou na plataforma, recolheu apenas Mariana numa de 2ª classe, ao mesmo tempo que as sete horas soavam no relógio da gare.
Pedro beberia a garrafa de vinho muito mais caro… apetecia-lhe desfolhar a algazarra…
- Sou um homem pragmático.

ana maria de jesus monteiro