quarta-feira, 18 de março de 2009

Officium Lectionis - Breve Sumário da História de Deus, de Gil Vicente

21h30, Igreja de S. Francisco, Fundão
No princípio era o verbo, a palavra criadora. E a palavra fez-se mundos e seres e tempos. E da palavra fizeram-se histórias, contadas de muitas e mui variadas formas. Esta é a história de Deus, história com «tais profundezas / que nunca se perdem serem recontadas», do pecado original à paixão e morte, passando pelas tentações e pelas figuras diabólicas da corte infernal. Um texto de Gil Vicente, representado originariamente em 1527 e aqui apresentado numa leitura cénica que destaca a plasticidade poética da palavra.
Officium Lectionis (Ofício de leitura ou Tempo da palavra no ritual litúrgico) é um programa de leituras cénicas a desenvolver entre o Município do Fundão e a Colecção B, dando à palavra dita/lida o espaço onde se cruzam o ritual, o sagrado e o espectacular. A leitura do Breve sumário da história de Deus, de Gil Vicente, no âmbito das celebrações da Quadragésima de 2009, constitui a sua primeira proposta.
Sobre o texto
Apresentado em 1527, em Almeirim, aos reis portugueses D. João II e D. Catarina, o Breve sumário da história de Deus resume os momentos-chave do Antigo e Novo Testamento, desde a criação do Mundo até à Paixão de Cristo, fazendo desfilar perante os nossos olhos as personagens mais emblemáticas da história cristã: Adão e Eva, Abel, Job, os Patriarcas Abrãao, Moisés, David e Isaías, S. João e Cristo. Juntam-se a estas o Anjo, o Mundo, o Tempo e a Morte, que guiam as grandes figuras no seu percurso entre a Terra e o Limbo. E, claro, não podem faltar os diabos, liderados por Lúcifer, o Anjo Caído, que, a cada momento, tentam desencaminhar os escolhidos de Deus.
Sobre o desafio de ler... e escutar
Em tempos que já lá vão, ler e ouvir ler eram práticas comuns associadas à fruição colectiva de textos dramáticos e narrativos. Fosse o cura da aldeia, fosse o professor ou o intelectual, a leitura reunia a comunidade sob o amparo da palavra reveladora e mágica. Como na leitura dominical realizada na Igreja, é a força inclusiva da palavra que pulsa na voz do leitor, criando cenários invisíveis, fazendo surgir personagens temíveis ou dóceis, aterradoras ou salvíficas.
A este efeito criador não são alheios ritmos, volume, timbre, expressão. E, para todos eles, é na presença viva do ouvinte que a magia da leitura acontece. O palco da leitura não é só o corpo e voz do leitor, presente num espaço físico perante os seus ouvinte. É também, é sobretudo, o palco da imaginação de cada um, lugar onde a palavra ressoa e evoca mundos, fantasias e segredos. O desafio de ler e ouvir ler convoca a eficácia ritual da palavra dita, pede-nos a redescoberta da sua presença essencial, actualmente tão afastada dos nossos quotidianos. No princípio era o verbo a fazer-se luz e mundo. Como hoje, como agora.


Sobre o leitor – entrevista com Pedro Caeiro
Tempos de ‘paixão’
uma leitura de Gil Vicente
Jovem actor português, Pedro Caeiro iniciou-se na representação com o Curso de Interpretação da Escola Profissional de Teatro de Cascais, sob direcção de Carlos Avilez, com quem viria a trabalhar nos anos seguintes. Ainda no campo do teatro, participou em duas edições do programa Ciclo Novos Actores, promovido pelo Teatro Municipal S. Luiz de Lisboa, e integra, desde o ano passado, a companhia Teatro do Vestido. O seu percurso passa também pelo cinema (Morrer como um Homem, de João Pedro Rodrigues e UNDO, de José Filipe Costa). Mas o seu rosto é principalmente conhecido do pequeno ecrã, tendo tomado parte no elenco da série juvenil Morangos com Açúcar (Rui na série IV), e das novelas da noite Fascínios e Flor do Mar. Num percurso tão intenso e variado, o encontro com Gil Vicente abre caminho a renovados desafios que o actor aceitou com total entrega e paixão. Falámos com ele sobre isso.
1. O Pedro Caeiro é mais conhecido do mundo da televisão do que do mundo do teatro. Mas o teatro está lá desde o princípio. Que te motivou a seguir este caminho?
Eu nunca pensei ser actor. Não sou daquelas pessoas que sempre tiveram esse sonho desde criança, foi uma coisa que surgiu. Tinha feito pequenos “teatrinhos” no secundário, mas foi por mero acaso que fui parar à Escola Profissional de Teatro de Cascais, onde, passados os primeiros quinze dias, o ‘bichinho do teatro’ começou a despontar em mim. Hoje em dia seria impensável para mim estar longe deste mundo, pois é isto que verdadeiramente me faz viver. É verdade que o reconhecimento que tenho vem da televisão e isso é normal, pois hoje em dia toda a gente tem acesso à televisão, o que não se pode dizer, infelizmente, do teatro! Mas, se fizer um balanço, é claro que já fiz mais teatro do que televisão.
2. Já tinhas feito Gil Vicente? Como te surgiu esta proposta e o que te motivou a aceitá-la?
Já tinha feito Gil Vicente na escola, pois faz parte do programa, mas profissionalmente ainda não, esta é a primeira vez. A proposta veio através da Colecção B, e o desafio foi o de apresentar uma leitura de Breve Sumário da História de Deus integrada no festival da Quadragésima, no Fundão. A ambição e a responsabilidade do projecto, aliadas à proximidade com aquela associação cultural, fizeram-me aceitar logo! E o facto de ser um texto de Gil Vicente, complexo mas de uma grande beleza poética tornou a proposta irrecusável!
3. Que desafios e / ou problemas te levantou este projecto e como os superaste?
Eu prefiro olhar para as dificuldades não como problemas, mas antes como desafios — e este projecto levantou-me bastantes! Primeiramente, por se tratar de um texto teatral — onde intervêm várias personagens — há todo um trabalho de expressividade para tornar as situações da história perceptíveis para o público. Quem fala com quem, que em palco é dado pela presença tem aqui de se referir de outra maneira, e as ordens, gestos, insinuações e silêncios expressivos têm de ser transformados. Por exemplo, eu leio as didascálias [aqueles textos de instruções aos actores], o que, de resto, dá um tom quase ingénuo ao texto que me agrada. Mas estar sozinho a ler um texto para uma assistência é muito assustador! Mas, como comecei por dizer, estas questões, mais do que problemas, são desafios! E encará-los assim é o meu ponto de partida para este trabalho.
4. Que sentido faz, hoje, a leitura de Breve Sumário da História de Deus, de Gil Vicente?
Isso é uma pergunta complexa. Que sentido faz hoje Gil Vicente? Que sentido faz hoje Shakespeare? Acho que o sentido está naquilo que temos para dizer com o texto, mesmo que ele possa, aparentemente, não fazer sentido hoje em dia. Eu, como muitos jovens da minha geração, não andei na catequese, nunca fui à missa e só assisti a cerimónias religiosas em casamentos... por isso posso dizer que, no meu caso, estou a aprender muito com este projecto. Penso que é um bom pretexto para conhecer a história de Deus, mesmo em forma de “sumário”!
5. És um actor dividido entre a televisão e o teatro ou um destes é mesmo a tua paixão?
Sempre respondi que o palco é mesmo a minha paixão. E penso ser verdade. Mas quanto mais televisão faço, quanto mais contacto tenho com a câmara, quantas mais coisas novas descubro a cada dia, mais essa resposta deixa de ser tão certa... Gosto de teatro, televisão, cinema... Tudo o que tenha a ver com este meio, é a minha paixão.

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