Chamo-me Paulo Borges. Sou professor na Universidade de Lisboa e escritor. Dirijo a revista Cultura ENTRE Culturas. Tenho dois filhos. Sou o primeiro signatário da Petição “Pela abolição das touradas e de todos os espectáculos com touros”, que circula na net e em versão impressa. A petição, lançada pelo Partido pelos Animais e pela Natureza (PAN), serviu de base à constituição da plataforma “Basta de Touradas”, que conta já com a adesão de 24 associações e entidades de defesa dos animais e com vários apoios de figuras públicas, nacionais e internacionais.
O Dr. Moita Flores, figura pública e actual presidente da Câmara de Santarém, lançou uma petição contra a nossa, redigida em termos que considero deveras preocupantes, vindos de uma pessoa com a sua responsabilidade cultural, cívica, social e política. Sei que se sente ameaçado pelo movimento de defesa dos animais, mas isso não justifica tudo.
No texto da sua petição chama hipócritas, histéricos, angustiados, “talibãs” e “horda de analfabetos” a todos os que são contra as touradas. Diz que chegou à idade “onde já não há paciência para ser insultado”, quando ninguém o insultou. Pelos vistos chegou à idade onde só tem paciência para insultar os seus concidadãos. Para insultar os milhões de portugueses que, por serem contra o sofrimento dos animais e contra a degradação dos homens que se divertem com isso, são considerados psicopatas, terroristas e incultos.
Fui amigo do Professor Agostinho da Silva, sou editor das suas obras e presido à Associação com o seu nome. Aprendi com ele e com muitos outros – desde São Francisco de Assis, Leonardo da Vinci e Antero de Quental a Gandhi, Peter Singer e ao XIV Dalai Lama - a defender a causa do bem de homens e animais e recordo que Agostinho da Silva dizia haver dois tipos de “analfabetos”: os que não sabem ler e os que sabem, mas não conseguem entender o que lêem. Creio que o Dr. Moita Flores se arrisca a ser suspeito de um terceiro caso, ainda mais grave: não conseguir sequer entender o que escreve. Pergunto-lhe quem dos opositores às touradas comete atentados bombistas ou pretende impor as suas ideias pelo terror e pela violência. Pergunto-lhe porque é que ser contra o sofrimento de touros e cavalos e contra a degradação dos homens que com isso se divertem é ser “analfabeto”. Sou autor de 22 livros (de poesia, ensaio, ficção e teatro) e sou professor na Universidade de Lisboa há 22 anos: os portugueses ficam a saber, pela superior inteligência do Dr. Moita Flores, que a dita Universidade contratou um “talibã” e um “analfabeto” que anda a converter ao terrorismo e à incultura os milhares de alunos que o têm tido como professor. E eu, que tive a felicidade de crescer numa família onde se desligava a televisão mal começava a dar uma tourada, fico a saber que os meus avós, o meu pai, a minha mãe, a minha irmã, o meu cunhado, a minha mulher, os meus filhos e amigos, eram e são todos "talibãs" e "analfabetos".
Não gosto de falar de mim, mas tenho de o fazer pela causa que defendo e porque isto é gravíssimo, vindo de um criminologista, de uma figura pública e de um supremo responsável político camarário. O Dr. Moita Flores insulta desavergonhadamente a maioria da população portuguesa que, como o indica um estudo recente (2007) do ISCTE, é contra as touradas. Segundo a brilhante dedução deste senhor, Portugal tem assim, a par da crise económica, mais um problema grave: a maioria da sua população é composta de desequilibrados mentais, “talibãs” e “analfabetos”.
A solução para este estado de coisas seria, segundo fica implícito no espírito da sua petição, irmos todos curar-nos, reabilitar-nos e cultivar-nos, com as nossas famílias, filhos e netos, para essas vanguardas da alta cultura que são as praças de touros, onde se descobre o sentido da vida e da existência, e se aprende a amar os animais e a natureza, aplaudindo num êxtase de alegria o espectáculo da dor e do sangue. Desprezemos as artes, as letras e as ciências, deixemos as escolas, abandonemos as universidades, onde segundo Moita Flores ensinam “talibãs” e “analfabetos”, e vamos todos atingir a maioridade cívica, mental e cultural a gritar “Olé!” nas touradas.
Agora sem ironia: o seu texto, Dr. Moita Flores, de uma retórica literária completamente desprovida de coerência racional e apenas cheia de arrogância e insultos a quem não pensa como o senhor, confrange pela desonestidade e/ou confusão mental de que dá mostras. Pois não sabe o senhor que os defensores dos animais são contra todas as formas do seu sofrimento, incluindo essas que refere, e não apenas contra as touradas? Diz que se converteu ao franciscanismo e que São Francisco de Assis lhe ensinou o “caminho ético e moral” para educar os seus filhos e eu pergunto: já alguma vez leu as biografias de São Francisco, onde por exemplo se diz que “Chamava irmãos a todos os animais […]” (Tomás de Celano, Vida Segunda, CXXIV, 165) e se compadecia perante os sofrimentos que os homens lhes infligiam? Está a ver o Santo de Assis consigo numa praça de touros!? E porque é que o “touro bravo” é uma “fera negra, símbolo da morte e do medo”? Não serão antes o toureiro e todos os aficionados que aplaudem o espectáculo da dor que são temíveis e negros símbolos – embora muitas vezes inconscientes - do pior que a humanidade traz em si? Fala do ritual trágico onde “vence a vida ou vence a morte” e eu pergunto se a evolução dos costumes não nos oferece outras formas, mais nobres, de fazer a catarse das paixões e vencer o medo, sem fazer sofrer ninguém? Não há hoje formas superiores de heroísmo, como dedicar-se às grandes causas de defesa dos homens, dos animais e da natureza? Não é isso mais benéfico, útil e urgente do que a religião cruel das touradas, anacrónica persistência dos arcaicos sacrifícios sangrentos? E não é uma grosseira mistificação identificar os opositores das touradas com a cultura urbana, quando há quem deteste touradas em todos os pontos do país, incluindo no Ribatejo e no Alentejo? Para já não falar da sua patusca ideia de que nós defendemos a “ditadura do ‘hamburger' urbano” (!?...) e de que é pelas touradas que se defendem os “Direitos do Homem”, dos animais e da “Terra”… Sinceramente, Dr. Moita Flores, o que há de lógico e sério nisto? Defendem-se os animais criando-os para os torturar? O touro bravo tem de ser torturado numa arena para continuar a existir e com ele os montados? Fala por fim da identidade nacional, da preservação da memória histórica de Portugal: triste identidade e triste país que depende de manter tradições eticamente inadmissíveis para subsistir! Pois eu digo-lhe: Portugal será muito mais motivo de orgulho para os portugueses, e muito mais respeitado internacionalmente, quando, após ser pioneiro na abolição da pena de morte, abolir as touradas e todas as formas de sofrimento animal. Portugal não desaparecerá, mas será um outro Portugal, que manterá na sua riquíssima tradição e cultura tudo o que for ético, relegando para os museus do passado a não repetir tudo o que hoje nos envergonha, como autos-de-fé, esclavagismo, perseguições político-religiosas e touradas.
Esta carta dirige-se a si, mas sobretudo a todos os Portugueses. Leiam-se as duas petições, o espírito, a argumentação e os objectivos de uma e outra, e vejamos o que queremos de melhor para o país, para nós e para as futuras gerações: aplaudir como cultura a tortura dos animais para divertimento dos homens, com prejuízo da sua humanidade e sensibilidade ética, ou dar um passo corajoso para abolir esta e todas as formas de fazer sofrer os animais, nossos companheiros na aventura da existência, em prol do seu bem e da nossa evolução pessoal e colectiva.
E vejamos quem queremos ter como representantes. É muito grave que num Estado de direito as forças policiais não sejam capazes de ou não queiram fazer cumprir a lei, como no recente caso da morte do touro em Monsaraz. Como é muito grave que uma figura como o Dr. Moita Flores desrespeite e insulte impunemente os seus concidadãos que, por imperativo de consciência, não pensam como ele. Está na hora de dizer “Basta!”: às touradas, a todas as formas de infligir sofrimento a homens e animais e a uma geração de políticos que coloca os seus duvidosos gostos pessoais, bem como os interesses de grupos minoritários, acima da sensibilidade maioritária da população. Está na hora de surgir uma nova geração, com um novo paradigma, que traga a ética para a política e assuma numa mesma bandeira a defesa dos homens, dos animais e da natureza.
Está na Hora! Basta!
Vamos assinar em massa:
Paulo Borges
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