sábado, 29 de janeiro de 2011

...uma tesoura de podar a realidade... short story...

Percorria o caminho embalado como que numa partitura de um martelo pneumático. As curvas eram apertadas e a ruas eram estreitas e íngremes, com piso irregular, paralelos, a Ford transit bege, serpenteava convulsivamente, escoltada pelos batedores da GNR. A euforia das sirenes azuis, este espectáculo, no mundo em que nasceu, tem sempre uma assistência apaixonada. O lírico aparato na passagem dos condenados, foragidos, julgados, sentenciados, executados, amotinados, que sempre induzem, em quem observa do ramerrão quotidiano, uma velatura estética insólita.
Desde pequeno tivera sempre dificuldade em apertar e desapertar os sapatos, aquele nó real fora sempre algo de intrigante para ele.
Não bramiu um revólver, não disse “isto é um assalto”, não haveria necessidade de chegar a tanto, não era na realidade um assalto, seria insensato, seria incapaz de o fazer, não a alguém que o recebeu no balcão de forma tão simpática, alguém no seu último dia de trabalho, amanhã… a tão merecida e ansiada reforma, exibia uma mudança radical no penteado, iria, a partir de agora, à semelhança de Hillary Clinton, deixar o cabelo crescer pelos ombros, com um gancho agarrando-o no alto da cabeça, imaginou que ela traria na carteira a foto dos netos que comovidamente as exibia aos clientes que lhe dessem mais tempo para a conversa. Ensaiou as palavras exactas: “Ponha todo o dinheiro dentro destes dois sacos! Discretamente! Faço questão que ninguém aqui se magoe”. Por momentos pareceu exibir um olhar sádico de revolta para com aqueles caracóis bem definido, na magia do tioglicolato de amónio, num loiro a condizer com a sua idade, que ela, outrora e sempre atrás do balcão, agora deixaria para trás. Uma verdadeira partner dissimulada?
Notícia de última hora: ”O famoso ilusionista Arnold Dwayne, nome verdadeito e que manteve como artístico, escapou de uma carrinha celular que tinha acabado de estacionar à porta do Departamento Central de Investigação e Acção Penal (DCIAP), em Lisboa, para onde tinha sido levado a fim de ser interrogado, após um bem sucedido assalto a uma agência do banco Lennon Brothers na Cruz-de-Pau. O detido encontrava-se algemado a uma corrente que rodeava a cintura da sua túnica cor-de-rosa, tendo estreado as novas algemas love, forradas com pelúcia vermelha, apontadas como de alta segurança.
O ilusionista recolhia, no campo pequeno, os aplausos do seu público enquanto a polícia se deparava com a carrinha celular deserta, conseguindo resgatar as algemas que Dwayne pendurou juntamente com a gravata do condutor do veículo celular na casa de banho do ministério da administração interna, o que levou à demissão imediata do ministro da tutela confrontado com o remoque que alastrou no cisma. O ilusionista, nascido na famosa Peshkopi, onde mantém instalado o seu quartel-general, a empresa fasthands, e de onde continua a expandir o seu rentável negócio e a crescente fama internacional, ficou famoso por casar com a famosa pianista de circo, Betje Janneke, e por realizar muitos truques de magia de grande subtileza como levar o actual primeiro-ministro português a copular com um bode troglodita homossexual.”
Nunca teve necessidade de explicar os seus truques, a realidade fantástica é mais aceite e menos bizarra que a realidade em si, mesmo depois de desmascarado, no público, o truque acciona um disfarçado encantamento na censura interna, uma tesoura de podar a realidade, instalando o bálsamo da ficção.
Desde pequeno tivera sempre dificuldade em apertar e desapertar os sapatos, aquele nó real fora sempre algo de intrigante para ele.
Ana Monteiro

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