Uma ambulância a chorar na avenida, coroada de lâmpadas azuis e encarnadas: deve ser a cozinheira a atravessar Lisboa. Lucília.
6:21 Quinta-feira, 18 de Fev de 2010
Os cães vadios chegavam em bando, vindos do escuro do pinhal, magríssimos, amarelos ou cinzentos, com feridas no lombo e de nariz junto à terra, a murmurarem. Aproximávamo-nos e fugiam com medo. Comiam pássaros mortos, carcaças de coelho, detritos. Às vezes, ao crepúsculo, sentia-os à volta da casa, procurando os sobejos do lixo no caixote: restos de frango, ossos, farrapos de embalagens de margarina, caroços de fruta. De tempos a tempos soluçavam, não ladravam nunca. Um deles, de pata mirrada no ar, caminhava com as outras três e as velhas, sentadas de lado nos burros, ameaçavam-nos com a bengala. Ou então dava com os cães de roda da capoeira a mirarem as galinhas. A cozinheira achava que eram almas penadas de gatunos. Os miúdos matavam-nos à pedrada, sob os castanheiros, e os animais ficavam para ali, cheios de moscas, a enterrarem-se sozinhos: quando não se enterra uma coisa viva a coisa sepulta-se sem ajuda, a pouco e pouco. As formigas auxiliam. E umas lagartas esquisitas, esbranquiçadas: tantos mistérios no mundo. Os arcos-íris, por exemplo, ou os milhafres da montanha, quietos lá em cima, a escolherem o vento. Tornei a dar por eles em África. Pelo menos pareciam-me eles, só que maiores e mais imóveis ainda. A única coisa que me surpreendia era a cozinheira não estar lá, a repetir
- Os milhafres
pasmada. Um dia adoeceu do peito e levaram-na. Desceu as escadas amparada a dois bombeiros. Lembro-me das pantufas e de segredar, pela dificuldade da boca
- Não tornamos a encontrar-nos, menino.
E não tornámos a encontrar-nos, realmente: o hospital de Viseu tão longe. Tudo tão longe nesse tempo, as caras dos adultos quase junto ao tecto, as cadeiras enormes e o mundo a encolher com os anos. Quando fica pequeno adoecemos nós: já vão sendo horas de arranjar umas pantufas.
Aqui, onde estou, a noite treme: não são as árvores, não são as sombras, não é a roupa, pendurada nos fios, que mal se distingue: quem treme é a noite. Move-se devagarinho na direcção de quê? Uma ambulância a chorar na avenida, coroada de lâmpadas azuis e encarnadas: deve ser a cozinheira a atravessar Lisboa. Lucília. A mala dela debaixo da cama, quase vazia, uma santinha fosforescente no vão da janela, brincos de pobre numa latita. Cheirava a lenha e a azedo, começava a ter rugas em torno da boca: se durasse uns meses mais tornava-se uma velha sentada de lado no burro a ameaçar os cães vadios com a bengala. Ao almoço tiravam uma batata crua do xaile e principiavam a roer-lhe a casca numa lentidão avarenta, enquanto os maridos, de boné, arrastavam a bota esquerda no largo. Reparando bem como a noite treme. Ou será a minha mão no papel? Avança e recua na cadência do sangue e eu a dilatar-me e a encolher-me com ela. Vontade de lhe chamar diminutivos: noitinha. Tão bonitos os diminutivos na nossa língua. Noitinha. Não tornamos a encontrar-nos, menino. E os brincos de pobre que não saem da ideia, a ferrugem na latita. Em cada ambulância é ela a circular na cidade, sem repouso. Não há hora que a não oiça, à roda, à roda. Se me aproximasse da ambulância fugiria com medo, como os cães? Ou levava-me à despensa
- Apetece-lhe um quadradinho de marmelada?
e ficava a ver-me comer, muito séria. Que queres de mim, noitinha, que não paras de chamar-me? Oiço o meu nome. Oiço o pêlo do tapete crescer, devo sentir-me sozinho, sinto-me sozinho, noitinha, confesso que me sinto sozinho: não há por acaso um burro aí para eu me sentar de lado com a minha batata no xaile? Roê-la mesmo crua, mesmo com casca? Cheirar a azedo e a lenha? Os milhafres em Portugal, os milhafres em África. As cadeiras enormes, tudo enorme. Apagar as luzes e ficar na casa vazia, de olhos abertos, à espera que qualquer coisa venha e me leve, não importa para que sítio desde que seja longe, onde ninguém me chama. De qualquer maneira, mesmo que permaneça à secretária, ninguém há-de chamar-me. visão
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