"É domingo, dia de missa na Igreja da cidade, e os sinos tocam para anunciar o sermão do padre ao seu rebanho servil. Soam as badaladas e vê-se uma ou outra pessoa entrar dentro desse local de culto a Cristo. Mas entramos dentro da Igreja quando o padre já se apresta para começar a sua missa e vêem-se apenas pouco mais de uma dezena de crentes. Do outro lado da cidade autocarros e automóveis transportam os crentes de uma religião cada vez mais em expansão para os seus lugares de culto. São milhares que se apressam a entrar nesses novos lugares megalómanos de oração para ouvirem a missa dos saldos. A morte de Deus anunciou a era do Capital, o novo Deus real.
A religião dos cristãos, nas suas diversas formas e dimensões, pregava acima de tudo uma salvação, a das almas que estariam condenadas a cair nas profundezas do Inferno, ao lado de outros pecadores, se não obtivessem uma salvação terrena. O sacrifício terreno era assim a única forma de obter uma pós-vida junto dos bemaventurados, daqueles que pagaram a sua pena em vida. O Reino dos Céus era assim a terra prometida, uma nova vida para além da morte para quem tivesse desprezado a vida na terra. À medida que esta religião se ia tornando decrépita muitos fanáticos foram descobrindo um novo culto, um culto que começou a ser erigido a partir do momento em que se começaram a produzir mercadorias em massa. Locais de culto foram construídos em diversos pontos do globo para converter os seus autóctones que, devido à sua grandeza e magnificência, os maravilharam. Estes locais começaram a nascer como cogumelos e os crentes nesta nova religião começaram a encontrar ali a sua salvação. Afinal não seria numa outra vida que esta seria encontrada. Um novo materialismo, alimentado por uma crença radical na ciência, cúpula intelectual desta religião em expansão, colocou completamente de parte qualquer possibilidade de uma vida para além desta.
Nada melhor então de que juntar ao materialismo crescente uma acumulação cada vez maior de mercadorias. A produção em massa vem assim satisfazer essa necessidade de acumulação supérflua, mas que cria um sorriso nas faces dos novos crentes. Nasce assim a religião do Capital com o seu novo local de culto, o Shopping Centre. Esvaziam-se as Igrejas, enchem-se esses centros de comércio.
O Reino dos Saldos não é algo de transcendental, é acessível a quem tenha um cartão de crédito. Não há a necessidad de haverem regras morais de conduta, nem restringimentos de qualquer tipo, basta um certificado de acreditação passado por uma qualquer instituição bancária para que se possa ter acesso a um imenso mar de produtos que farão o crente sentir-se satisfeito. Nesse reino terrestre, que se pode descobrir dentro dos locais de adoração ao Deus Capital, pode-se encontrar de tudo. Para os adeptos da vanidade, ou melhor dizendo da vaidade, encontram-se inúmeras lojas de roupa, sapatos, malas, cosméticos, tudo a preços bastante acessíveis para quem pode usar o cartão de crédito. Para os glutões existem inúmeras cadeias de fastfood sempre prontas a providenciar um menu completo acessível a qualquer bolso mais miserável. As calorias contidas nesses menus dariam para engordar o mais faminto dos humanos, e a um preço imbatível. É o reino da abundância. Para osmque não se suportam existem as lojas de telecomunicações, podendo assim estar sempre em contacto com outros que não se suportam, havendo assim uma alienação momentânea com vista a uma socialização que os faz esquecer o seu vazio existencial. Para adeptos da auto-lobotomia existem as lojas de videojogos e os cinemas. A mirada no ecrã, durante uma grande parcela do tempo diário, é um sucesso garantido. A actividade cerebral é reduzida ao mínimo, o tempo esvai-se, e a sensação de libertação do peso existencial vale o preço por ela paga.Existem também as agências de viagens prontas a vender uma fuga para os paraísos artificiais mais na moda. Também a cultura é vendida nestes locais de culto a um preço acessível. Nas montras expõem-se os novos best-sellers, literatura light que não obriga a uma cansativa actividade cerebral. O último grito da pop musical está também colocado nas prateleiras, a apregoar um romantismo infantil ligeiro digno de uma telenovela.
Outro produto que se vende nestes locais de culto é o tempo, o dos que nele trabalham aliado à sua mão-de-obra. Para que estes monumentos megalómanos possam existir há a necessidade de se empregar o labor dos escravos modernos que por um salário de miséria vendem o único produto pelo qual podem capitalizar, a sua força de trabalho. Ao capitalizarem essa força de trabalho também eles podem fazer o papel de crentes, gastando o seu mísero salário nos produtos à venda nos locais de culto onde se vendem. Para que tais centros de culto possam existir, para que possa haver produção em massa, explora-se meio mundo. Exploram-se recursos naturais, explora-se a vida animal, explora-se a mão-de-obra escrava. Destroem-se florestas, desertificam-se os campos e os mares, chacinam-se animais. A transformação dessa matéria bruta implica mais destruição, gases são emitidos diariamente não só nas fábricas onde são produzidas as mercadorias, mas também no transporte desses produtos através do globo. As suas implicações são catastróficas. Tudo para alimentar a necessidade sanguinária do Deus Capital, representado no globo terrestre por um grupo reduzido de corporações multinacionais com os seus afanados dirigentes à cabeça. E o rebanho continua a seguir os seus mandamentos dirigindo-se para os seus centros comerciais onde se comercializam os produtos da destruição planetária. Tal como sanguessugas, é de uma miséria humana que estes emissários do Deus Capital se alimentam, através de métodos alienantes de pressão social baseados em padrões de existência. A alienação do património de todos levou a uma construção de hierarquias com esse todo-poderoso Deus Capital no topo a ditar as suas regras e leis e seguido por uma horda de crentes que o veneram cada vez que satisfazem a sua miserável vida ao adquirirem um produto proporcionado por essa religião do Capital. A miséria humana, donde se alimentava a religião cristã, é a miséria humana donde se alimenta agora essa nova religião parasitária, que não se contentará até que consiga assimilar toda a vida neste planeta onde existimos."
Pedro Morais, revista Húmus
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