sábado, 10 de julho de 2010

...o medo... antónio lobo antunes/visão 1 de julho

Radioterapia, medicamentos, misérias, visitas das duas às três nos dias úteis, das duas às cinco aos fins de semana, algálias, dores
Mostrou-me a análise à próstata no café
Um bocado alta não está?
Um bocado alta, de facto, e a gente os dois a olharmos o papel como se pelo facto de o olharmos muito tempo os números baixassem: não baixavam. Mantinham-se inamovíveis, a encarnado. Acabou por dobrar o papel e guardá-lo:
- O meu médico marcou-me consulta para o especialista
e silêncio. Sentou-se à minha mesa sem pedir licença, a olhar-me ­
- Acha que é grave
e não respondi porque não queria resposta. Queria alguém à frente dele, apenas. Tirou os cigarros do bolso, voltou a metê-los.
- ­Não se pode fumar em parte nenhuma, sorte malvada.
Lá fora, do outro lado da vitrina, o quiosque dos jornais e revistas. Numa delas um casal abraçado: Mécia e Raul, separação no horizonte? E frio, e chuva. Não calha bem adoecer em fevereiro. Faltava-lhe um botão num dos punhos da camisa, a barba mal feita no queixo:
- Desde que recebi a análise nem durmo
e na mesa vizinha um par de senhoras gordas, cheias de anéis, a cochicharem.Entre ambas a revista do quiosque, aberta nos desenvolvimentos da possível separação da Mécia e do Raul. De esguelha, em letras gordas sobre uma fotografia: Mécia: Tudo tem a sua duração; Raul incontactável. Comentou ­
- Isto da próstata é uma gaita e em letras gordas, sobre outra fotografia: Um amigo de Raul: Em devido tempo ele dirá de sua justiça. Não, mais completo: Um amigo de Raul, que solicitou anonimato: Em devido tempo ele dirá de sua justiça. Percebia-se que as senhoras esmiuçavam o assunto, uma delas mencionou uma actriz que a senhora afirmava ter má índole:
- ­Não suporta que os outros sejam felizes, aquela, fez o mesmo à Patrícia, dona Esperança, lembra-se?
A dona Esperança lembrava-se
- E à Carla, já agora
enquanto o da análise
- Vai na volta tenho um cancro, amigo tentei um gesto de
- Hoje em dia essas coisas
que não me saiu bem, saiu mais do tipo
- Ninguém cá fica para semente, não é?
de maneira que emendei
- A maior parte das vezes são falsos alarmes
os cigarros saíram de novo e voltaram ao bolso ­
- E se não forem?
e a barba mal feita pareceu aumentar. No outro punho havia botão, e haver o botão, não sei porquê, alegrou-me:
talvez tenha interpretado como sendo um bom sinal em relação ao cancro.
A amiga da dona Esperança, assanhada com a actriz ­
- O sarilho que ela arranjou à Débora na época do futebolista, já pensou?
A dona Esperança já tinha pensado:
- Uma galdéria
definiu ela
- Uma galdéria e tanto
mas havia o botão, felizmente. Por pouco não o aconselhei a agarrar-se ao botão. A amiga da dona Esperança gostava tanto da actriz que se ela caísse ao Tejo lhe atirava uma palhinha para ajudá-la a não se afogar. Em lugar do conselho de se agarrar ao botão afirmei com autoridade ­
- O que mais há por aí são falsos alarmes
de cabeça a desviar-se para a Célia, coitada, que usava um decote tão profundo como uma ravina: uma rapariga de bem, notava-se logo nos olhinhos ferozes, uma vítima. Ganas de interrogar a dona Esperança
- Quem é a Célia, afinal?
com uma parte do meu corpo a tentar apreciá-la em detalhe. Aí, infelizmente, a amiga da dona Esperança impediu-me os propósitos ­
- Embora no caso do futebolista o rapaz tenha culpas no cartório
e a impressão que a análise aumentava no interior do casaco, a latejar:
- Vai-me nascer um neto para o mês que vem, já reparou na coincidência?
e quem seria a Célia, meu Deus? E a Patrícia? E uma Raquel que surgia agora na conversa ­
- Ao menos a Raquel é o filho do ministro e pronto
O neto que nascia para o mês que vem obcecava-o: a filha empurrava a barriga a custo, de pernas inchadas:
- Se der para o torto mal vou conhecê-lo
radioterapia, medicamentos, misérias, visitas das duas às três nos dias úteis, das duas às cinco aos fins de semana, algálias, dores, o da cama à esquerda a pifar do esófago suplicando ­
- Olha-me os meninos, Laurinda
e o decote da Célia a inquietar-me. Abaixo do decote umas calças tão justas que só podia despi-las à tesourada. Estava capaz do sacrifício de ser eu a pegar na tesoura.
-O primeiro neto, compreende?
Compreender compreendia, mesmo de tesoura nas unhas. Não te esqueças de comprar a revista ao saíres daqui porque há-de haver mais fotografias de certeza. Há-de ou hão-de? Não interessa desde que as fotografias lá estejam, de qualquer maneira a quarta classe já cá canta. Em relação ao cancro lembrei-me do treinador do meu clube ­
- Há que levantar a cabeça e pensar no jogo do próximo domingo
e limitei-me à primeira parte da frase. Este treinador é bom, pelo menos pôs aquela cambada a correr:
- Há que levantar a cabeça
garanti para microfones invisíveis, e acrescentei
(não daria grande treinador eu, comigo a cambada amolecia logo) ­
E ter pensamento positivo. Esta do pensamento positivo era do primeiro-ministro:
- Pensamento positivo, senhores deputados, pensamento positivo
mas ninguém, mesmo do partido do governo, aplaudiu. Acrescentei em desespero ­
- Vamos aguardar com calma pelo especialista
enquanto a Célia, sem calças, jurava ­
- Tudo tem a sua duração
de maneira que o melhor era não perder muito tempo antes que a duração acabasse.

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