quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

...cadernos do subterrâneo...

Um novo 'herói' apresenta-se na literatura mundial. Ele é ranzinza, fútil, briguento, solitário, anti-social. Ele é pobre, praticamente miserável. Nunca será um grande homem, seja lá o que isso possa significar. Não deixará marcas nas lembranças das pessoas que o conheceram ou dos raros 'amigos' que teve em sua vida. Não tem esperanças, expectativas, projetos, planos. Se os tivesse, como algum dia chegou a ter, seriam vãos, foram vãos. É um neurótico, preso em sua existência inútil. E é um mentiroso, mente para os seus colegas, para a dona da pensão onde ‘vive’, mente para o leitor e, principalmente, mente para si mesmo.
"Sou um homem doente... Sou um homem despeitado. Sou um homem desagradável. Creio que sofro do fígado".
Este homem se revela para nós, solta sua bílis, desnuda o lado sombrio do ser humano. "Quero contar-vos, senhores, mesmo que não desejeis ouvi-lo, porque nem sequer consegui tornar-me um inseto. Declaro-vos solenemente que muitas vezes quis tornar-me um inseto. Mas nem disso fui considerado digno". O prazer está em remoer sua própria humilhação, de sua incompetência social, de se saber, ou se considerar, mais inteligente do que as pessoas que o cercam e perceber que isso não adianta um mínimo. A ciência é uma falácia: "Não me trato e nunca me tratei, embora respeite a medicina e os médicos. Além disso, sou extremamente supersticioso; o suficiente, em todo o caso, para respeitar a medicina. (Tenho bastante instrução para não ser supersticioso, mas sou.)" Ideais, conceitos de beleza, grandiosidade, abnegação... ? Ora, são balelas, ilusões, sonhos dourados que se esgotam no canhestro cotidiano.
Quem é este homem, complexo, angustiado, relegado e esquecido, que não merece sequer ser jogado pela janela em um briga de bar, ser xingado, ou enfrentado? Um tapa na cara seria exultantemente recebido, pois significaria que alguém teria reconhecido sua condição de ser existente, vivo, presente. Mas, ele?! Nada. Até uma dor de dente é bem vinda, pois é viva, latente, manifesta-se.
Quem é esse homem que irrompe na imaginação do contemporâneo, que obriga e "suja" a presença na cultura, nas artes, na literatura do século XX? Quem é este ser desprezível que assoma e toma ares épicos na obra de um Balzac, de um Flaubert, de um Kafka e que anda perdido, tantas vezes despersonalizado, jogado em uma realidade bruta e brutalizante, indistinguível, de regras absolutas e desconhecidas, verdadeiras rodas-vivas esmagadoras de consciências?
"Notas do Subterrâneo" é, em tudo e por tudo, reflexo e motor destas angústias e dos terrores trazidos por uma Modernidade avassaladora, destruidora, tecnologicamente impecável e impessoal, de conflitos sociais e de explorações econômicas nunca antes imagináveis e cujos limites e imposições estão escondidos, enevoados, descentrados. Nunca como antes a presença do dinheiro foi tão preponderante. Nunca como antes, valores humanos foram tão soterrados e humilhados, perdendo sua antiga validade, deixando no seu lugar ... a perplexidade.
Obra-prima de concisão, impacto e aterradora beleza de Dostoievski, "Notas do Subterrâneo" é uma autêntica dissecação a frio, ao vivo e sem contemplações do ser humano metido (ou enterrado) nesta tal Modernidade, com todas as suas indefinições, incertezas, dores e sofrimentos. A densidade psicológica e a acuidade perceptiva desta pequena novela (que nesta edição da Bertrand Brasil não possui nem cento e cinquenta páginas!) são comparáveis, em força e profundidade aos monumentais "Crime e Castigo" ou "Os Irmãos Karamazov".
Ao longo desse monólogo narrativo introspectivo, contraditório, complexo e intrincado, somos levados mais uma vez à confirmação de que a verdadeira obra-de-arte remete ao mais fundo da sensibilidade e do reconhecimento. Somos nós que estamos sendo retratados, carregamos este mesmo subterrâneo conosco, possuímos as mesmas dúvidas, embora quase nunca tenhamos a honestidade de confirmar-las, nem para si mesmo. O espelho foi construído e nunca é fácil olhar para a próxima imagem.
Como sempre, é impossível passar incólume por uma leitura de Dostoievski. Ainda mais quando ele está no auge de sua maestria.aqui

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