quinta-feira, 16 de julho de 2009

...a inspiração atomista do materialismo dialéctico...

A tese de doutoramento de Marx, A diferença entre as filosofias da natureza em Demócrito e Epicuro, assim como a Ideologia Alemã e a Sagrada Família, são obras onde se desprendem assumidas influências do atomismo no materialismo de Marx, aliás, o próprio Marx considera que o materialismo da sua época é tributário do materialismo atomista de Epicuro e Demócrito.
Segundo Marx, a sua tese de doutoramento resolve um problema na filosofia grega, devolve a importância histórica e de pensamento ao círculo Epicuro, Estóicos e Cépticos. Para Marx a história nem sempre fez justiça para com estas linhas de pensamento, sendo mesmo consideradas como apêndices em relação ao pensamento grego. O próprio Hegel, o grande pensador, entrincheirado no que ele pensava que era o pensamento especulativo, não reconheceu a estes sistemas a devida importância em termos de história da filosofia. Na sua tese de doutoramento, Marx refere que a história da filosofia grega não fez justiça a estes sistemas, terminando a filosofia em Aristóteles, sendo as filosofias pós-Aristotélicas consideradas como um complemento incongruente, sem nenhuma relação com seus vigorosos antecessores, e a filosofia epicurista foi considerada como um agregado sincrético da física de Demócrito e da moral Cirenaica.
Mas, segundo Marx, estes sistemas são a chave para compreende a verdade da história grega. Não podemos afirmar que a tese de doutoramento de Marx seja um estudo exaustivo do atomismo, aliás é ele próprio que no-lo afirma, que o que lhe interessa particularmente não é uma teoria da matéria ou uma teoria das relações entre a matéria e o espírito, ou mesmo a diferença entre a física de Demócrito e Epicuro acerca dos átomos e o espaço. Na própria dedicatória ao futuro sogro, Ludwig von Westphalen, Marx, na senda de encontrar o elemento subjectivo destas filosofias, reconhece-as como de vital importância para decifrar a emergência da consciência-em-si e para a resolução do problema entre a filosofia e o mundo. Podemos ver já aqui um ponto de distanciamento em relação à filosofia hegeliana, se tivermos em conta a atenção que Marx vai dar à auto-consciência.
Desde a primeira parte da sua tese, podemos concluir que se na base do atomismo de Epicuro está o atomismo mecanicista de Demócrito, cedo se começam a traçar desigualdades, no que diz respeito à verdade, à possibilidade do conhecimento, à relação entre o pensamento e a realidade, e ao próprio sentido da ciência.
Se Epicuro deve aos livros de Demócrito a inspiração para a sua teoria física, porém, adopta uma postura crítica face a este na sua construção teórica, aliás, podemos situar Demócrito do lado da necessidade e Epicuro do lado do aprofundamento dessa mesma necessidade. Todo o atomismo é formado por construções singulares por parte dos pensadores que integrar esta escola, muito apesar de Cícero afirmar que não há nada na física de Epicuro que não esteja já na de Demócrito, o que se afigura como uma afirmação polémica.
Posicionando-se ao lado do filósofo do jardim, afasta-se de uma tendência para o cepticismo por parte de Demócrito, tendo este reduzido a realidade sensível à aparência subjectiva, não conseguiu estabelecer uma relação entre a essência e o fenómeno ao afirmar que a verdadeira realidade são os átomos e o vazio, sendo tudo o resto mera aparência, aderindo, Marx, à ideia de que as percepções sensíveis não podem ser eliminadas, afirmando que toda a sensação é verdadeira, pois revela com evidência imediata a natureza das coisas e determina o conhecimento racional. O erro ocorre quando a razão julga erradamente os dados da experiência sensível.
Demócrito cai assim no cepticismo recusando o conhecimento da essência das coisas e apenas as qualidades, dos átomos, percebidas através dos sentidos, tais como, o cheiro, o frio, a cor, na forma como são percebidos pelo sujeito, sendo, como tal, aparência e instabilidade, excluindo a verdade do ser.
Ao contrário de Demócrito, vemos em Epicuro a confiança no conhecimento da verdade a partir dos sentidos, como fonte segura do saber e os arautos da verdade, a Epicuro interessa encontrar a compreensão, de forma simples, para o mundo físico, que assenta na sua filosofia na divisão: a física -filosofia da natureza, a canónica - teoria do conhecimento e a ética filosofia moral, e o mais interessante será que são as duas primeiras a fundamentar a última.
Não podemos pensar Epicuro sem parar na sua ideia de declinação da linha recta associada ao movimento dos átomos, encontrando aqui a sua originalidade em relação a Demócrito que apenas equaciona, como movimentos que conduzem à formação de compostos, a queda em linha recta e a repulsão entre os átomos. Assim, segundo Marx a física de Demócrito assenta na categoria da necessidade, ou num determinismo natural, e exclui a génese ontológica da liberdade. Ao considerar a possibilidade do desvio da linha recta, ou de um terceiro movimento dos átomos no vazio, de repulsão, Epicuro, introduz a ideia de clinamen, ou movimento de declinação, como determinação formal, que chega até nós através Lucrécio, o único de todos os antigos que compreendeu a física de Epicuro, nas palavras de Marx.
Para Marx a declinação era um aspecto central na filosofia de Epicuro como originária da consciência de si singular e abstracta, não se ficando apenas como um elemento da física, mas ocupando um lugar central na sua moral, fundando mesmo a ideia da ataraxia.
A queda em linha recta, como determinação material, não contempla a individualidade ou singularidade de cada átomo, antes pelo contrário, torna-os simples pontos que se movem, sem liberdade ou autonomia. A ideia de liberdade atrai Marx, principalmente a ideia de uma vontade própria ou auto-determinação, introduzida por Epicuro através da ideia da possibilidade do acaso, na negação do movimento da linha recta. Nas palavras de Lucrécio, Epicuro, rompe com os laços da fatalidade, sendo uma quebra nas cadeias do destino. Aliás, como nos diz Marx, a própria existência das coisas depende da declinação, dado que movimento em linha recta impossibilitaria o encontro dos átomos.
A declinação para além de explicar o encontro entre os átomos, ultrapassa o campo da física, e no âmbito social e político, em formas como o contrato e a amizade, como movimentos de autodeterminação e autarquia dos homens singulares, que desviam o ser humano da sua imediatez natural e o lançam no plano da liberdade e até do fortuito, libertando o homem do determinismo, o que poderá aqui fazer eco na concepção da luta de classe em Marx.
Seguindo o raciocínio de Marx, a singularidade humana, realiza-se como tal, reportando-se a outra coisa, por exemplo a uma existência imediata.
O próprio conceito de existência alienada, tão caro a Marx, está já presente pelo conceito de contrariedade entre a forma pura e a expressão material dos átomos. Tamanho, forma e peso são as qualidades atribuídas aos átomos por Epicuro, na composição dos mesmos a forma é fundamental e daí podemos concluir que estamos perante uma relação dialéctica entre a forma e a matéria, sofrendo esses mesmos átomos de mutação, em diversas formas, entram em contradição com a ideia de imutabilidade do átomo, por exemplo a negação do tamanho seria a pequenez infinita. Marx assimila a ideia de contrariedade entre a essência e a existência, ou a alienação da essência, enquanto princípio constitutivo do ser, apresentando Epicuro com tendo representado o fenómeno através da materialização do átomo, na sua determinação material ou manifestação sensível.
Marx é sensível ao confronto da natureza com a sua forma, o que o leva a chamar Epicuro o Maior iluminista grego, na sua teoria económica, Marx recusa as leis eternas da economia, que poderão ser combatidas pela autonomia do indivíduo. Marx assimila também a ideia de uma realidade sensível como ponto de partida da consciência irrefutável, ou seja a importância da percepção sensível na formação da teoria.
Ana Monteiro

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